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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.sp24 Lisboa maio 2024  Epub 06-Maio-2024

https://doi.org/10.15847/cct.35673 

ENTREVISTA

“Aqui é tudo colectivo”. Conversa com o Arquitecto José Silva Carvalho, sobre o Bairro 25 de Abril construído ao abrigo do programa habitacional Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL)

Sara Silva Lopes1 
http://orcid.org/0000-0003-1973-6088

Teresa Marat-Mendes1 
http://orcid.org/0000-0002-4447-0413

Rui del Pino Fernandes1 
http://orcid.org/0000-0001-6155-4435

João da Cunha Borges1 
http://orcid.org/0000-0002-8502-8250

1DINÂMIA’CET-Iscte, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, Sara_Alexandra_Lopes@iscte-iul.pt


Entrevista realizada na Associação de Moradores do Bairro 25 de Abril, Linda-a-Velha, Oeiras, a 15 de Fevereiro de 2024. O texto aqui apresentado é uma versão seleccionada de uma conversa mais alargada onde foram abordados mais temas referentes ao percurso profissional de José Silva Carvalho. Publica-se aqui a parte referente à sua participação no programa SAAL.

José Silva Carvalho (1947) é um Arquitecto português licenciado em 1971 pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa (ESBAL) e diplomado pela mesma em Fevereiro de 1974.

Trabalhou enquanto estudante, entre 1966 e 1967, no atelier do arquitecto e professor António Pardal Monteiro (1928-2012), tendo integrado equipas de diversos projectos, nomeadamente no projecto do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge.

Seguidamente trabalhou, entre 1967 e 1968, no atelier do arquitecto António Freitas Leal (1927-2018), membro fundador do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR).

Entre 1969 e 1974, trabalhou no Secretariado das Novas Igrejas do Patriarcado (SNIP), instituição dirigida pelo arquitecto Diogo Lino Pimentel (1934-2019), onde concretizou a sua primeira obra integral, a Capela do Cemitério do Seixal, inaugurada em 1971.

Em 1974, integrou a Equipa de Apoio Local de Linda-a-Velha ao abrigo do programa Serviço de Apoio Ambulatório Local para a construção do Bairro 25 de Abril.

Trabalhou no Gabinete Técnico da Habitação (GTH) da Câmara Municipal de Lisboa. Foi autarca na cidade de Lisboa, na Freguesia de Carnide, eleito para o mandato de 1982 a 1985.

É co-autor do Guia Urbanístico e Arquitectónico de Lisboa (1987), editado pela AAP/Ordem dos Arquitectos (OA).

Foi membro eleito para o Conselho Directivo da AAP/OA, onde foi responsável pelo pelouro de Lisboa/Património durante dois mandatos, entre 1987 e 1992.

Foi convidado a formar e dirigir o Gabinete Técnico da Madragoa, a partir de Janeiro de 1991, onde coordenou o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Madragoa (1997). Entre 2005 e 2017, foi responsável no Município de Lisboa pela proposta e organização dos Projectos de Decisão Final para a classificação dos Imóveis de Interesse Municipal da cidade.

Para além de projectista, realizou comunicações e publicou artigos e livros sobre o património edificado de Lisboa.

Fonte: João Cunha Borges, 2024.

Figura 1 Visita ao Bairro 25 de Abril, Linda-a-Velha, Oeiras 

José Silva Carvalho (JSC): Em Dezembro de 1974, fui sondado por um amigo. Havia uma distribuição por causa do SAAL e precisavam imenso de um arquitecto para Linda-a-Velha. Aceitei vir para cá e paralelamente abri um atelier. Mas o meu trabalho no SAAL foi, de facto, em Linda-a-Velha.

Sara Silva Lopes (SSL): Integrou a brigada [Equipa SAAL] já formada ou ainda estava a ser formada?

JSC: Ainda não estava formada. Estava em processo de formação.

Rui del Pino Fernandes (RdPF): E a população já estava organizada?

JSC: Não, estava a começar a organizar-se. Houve uma primeira pessoa. Uma psicóloga, a Isabel Cordovil, que estava aqui sozinha e precisava urgentemente de um arquitecto. No início de 1975, já estávamos eu e ela.

SSL: É logo dos primeiros elementos a entregar a brigada?

JSC: Sim, sou o segundo, logo a seguir à Isabel. O que ficou acordado foi: ela ser responsável por toda a área da gestão social e eu era responsável por toda a área de projecto. E assim foi até ao fim.

Linda-a-Velha era um aglomerado onde, em termos que barracas e abarracados, existiam nove núcleos dispersos (Figura 2). Dois desses nove eram claramente os chamados bairros de barracas e havia um outro que era um bairro muito sui generis, a ‘Vivenda Dona Aninhas’.

A ‘Vivenda Dona Aninhas’ era muito pior do que um bairro de barracas. Era uma vivenda que tinha um terreno e ela decidiu rentabilizar aquilo com construções de alvenaria de tijolo. Lembro-me perfeitamente que a primeira casa (Santos, 2016, p. 58.), chamemos-lhe o primeiro alojamento, tinha uma divisão - naturalmente sem casa-de-banho, sem água, sem nada - com cerca de dois metros de largura e uns três ou quatro metros de comprimento. Era uma casa com telha de ‘lusalite’1 quase a bater na cabeça.

SSL: Era a isto que se referiam quando se referiam a núcleos degradados? Porque existia uma distinção entre os bairros de barracas e os núcleos degradados.

JSC: Não, núcleos degradados eram todos. Eu disse que existiam dois, mas existe uma terceira tipologia. Era o chamado Bairro da Câmara. Quando houve as cheias de 1967, a Câmara fez um realojamento que consistia em uns bidons, umas unidades pré-fabricadas pequenas - preferíveis à ‘Dona Aninhas’, é evidente. Era uma terceira tipologia de fogos, digamos assim.

Eram sete os núcleos mais convencionais, em madeira e alvenaria simples, e os restantes em fibrocimento, madeiras e alvenaria, mas com outras estruturas diversas.

Mas, desenganemo-nos, havia mulheres, como a Silvina e a tia Pega - Pega, não sei se tinha a ver com a vida anterior dela, mas creio que não - e outras como a tia Esperança. Estou-me a lembrar da tia Pega, cujo filho era pintor, que vivia num bairro de barracas. Nós entravamos naquela ‘casa’, naquela barraca, e era um mimo. Pequeníssima, com uma divisão, mas maior do que a do outro senhor [da ‘Dona Aninhas’]. A casa toda pintadinha com o requinte - as paredes foram pintadas com uns rolos que tinham uma saliências com desenhos, de uma cor rosa-escuro e com as saliências em azul - pintado com um cuidado extremo. Tinha uma cama, com uma colcha e uma boneca em cima, que era uma coisa usual. Era ‘lar’, no sentido nobre do termo.

Depende um bocadinho ou muito das pessoas, o ambiente.

A casa dela, a nova, que era das mais pequenas, era uma casa decente (Figura 3). Fiz questão que não houvesse divisões com menos do que a área mínima regulamentar. Contudo, tentava que não fosse muito mais área, para poder alojar mais pessoas. O RGEU (Regulamento Geral das Edificações Urbanas) foi o meu evangelho.

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 2 SAAL Linda-a-Velha, núcleos de barracas 

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 3 SAAL Linda-a-Velha, o prazer na nova casa 

SSL: Sobre a construção do bairro. Reparámos que as alterações realizadas a posteriori têm uma uniformidade. Existiu algum projecto ou alguma indicação para as modificações realizadas?

JSC: Não, isto não era para ser habitação evolutiva. Logo em 1974 houve uma ocupação de um edifício, de piso térreo, para fazer a sede. Eu não era vanguarda, no sentido de ser o homem da iniciativa, de ir à frente.

Nem todos os meus colegas do SAAL tinham esse comportamento, existiam, por vezes, alguns problemas nas Associações, como é natural nestas situações. Em algumas equipas houve tentativas de partidarização. Nesta associação, curiosamente, existiam pessoas de todos os partidos. Havia do PS (Partido Socialista), havia do PC (Partido Comunista Português), da UDP (União Democrática Popular) e do MES (Movimento de Esquerda Socialista). Era uma coisa muito interessante e nenhum partido assumiu uma posição preponderante.

No princípio de 19752, ocupámos a sede (Figura 4), para trabalharmos no bairro. Lembro-me de ter sido dos raros arquitectos que trabalharam no local e tenho um certo orgulho de ter feito todos os projectos para o bairro no local de implantação.

‘Habitar’ é diferente de ‘alojar’. ‘Habitar’ exige mais do que dar casa, exige toda a parte de produção de equipamento.

De facto, consegui e tive muita importância nisso. Digo consegui, mas o conseguir é sempre no colectivo. Aqui é tudo colectivo.

Criou-se aqui um ambiente, em que eu tinha alguma força no projecto, e a Isabel tinha alguma força na gestão social, na preparação das reuniões e do apoio à Associação de Moradores 25 de Abril para a criação dos estatutos.

Este é um dos raríssimos SAIS reais. Foi um dos processos SAAL que, entre 1980 e 1981, estava tudo construído. Eventualmente, não as últimas fases.

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 4 SAAL Linda-a-Velha, atelier na sede ocupada 

SSL: Pode documentar quantas foram as fases de construção?

JSC: Não consigo precisar exactamente quantas, mas houve de facto várias fases. Ainda, em relação à sua pergunta anterior, as alterações foram algo que ocorreu perto dos anos 80. Ainda nos anos 70, houve alguém que veio para o bairro e acabou por ter algum poder. Tinha um irmão arquitecto e ele acabou por ir para a Câmara.

SSL: Você não integrou na Câmara?

JSC: Não, eu não integrei na Câmara.

SSL: Por decisão sua?

JSC: Por decisão minha. Houve conluios que não gostei nada. Nada mesmo. E, de facto, foram feitos esses projectos de alterações entre 1980 e 1982, nas minhas costas.

SSL: Então, foi a Câmara Municipal que procedeu à realização desses projectos de alterações?

JSC: Sim. Agora vou falar como se diz em terminologia jornalística. foi nas minhas costas. O que na disciplina de arquitectura vai contra o código deontológico dos arquitectos [Ordem dos Arquitectos (O.A.)].

Já depois de 1980, fiz para o bairro o recinto de jogos. A intenção foi ter a habitação em torno do corpo central, que era constituído pelos equipamentos e jardim, ter uma zona de jogos a norte. A zona de equipamento, era composta por um centro de dia, uma creche e uma zona de hortas (Figura 5 e 6). Tendo elaborado os projectos do centro de dia, da creche e da sede da associação.

SSL: O projecto da sede da associação de moradores não é seu?

JSC: É meu também.

Como disse, do concelho de Oeiras, os SAIS verdadeiros foram dois: Foi a primeira fase de Portela-Outurela3 e de Linda-a-Velha.

Foram feitas em tempo útil, com os arquitectos, os engenheiros e os sociólogos no terreno, com o financiamento, tal como tinha sido concebido desde o início. Processo que nada tem a ver, por exemplo, com o Portela-Outurela, nas fases subsequentes, que são bairros municipais com processos de financiamento completamente diversos.

Em Caxias e Paço de Arcos, pouco é verdadeiramente SAAL. O projecto foi começado no SAAL, mas nada tem a ver com o SAAL.

Fiz o primeiro projecto de infra-estruturas e o loteamento, que foi para a Câmara. Teve imensos meses, meses e meses, para ser aprovado.

Entretanto, nós não tínhamos espaços nenhuns para reunir - a não ser o edifício ocupado - e a Câmara oferece uma Sede para a Associação 18 de Maio [Bairro SAAL Portela-Outurela] por razões partidárias, enquanto o nosso projecto estava retido na Câmara.

Enfim, passaram-se várias coisas destas, a vários níveis, o que caiu mal a algumas pessoas.

Um dia, após vários sem resposta da Câmara, aqui meia dúzia de membros da Direcção da Associação de Moradores, decidiram ir à Câmara e perguntaram se eu não queria ir. Eu lá fui atrás deles, até porque podiam surgir questões do plano técnico e era eu que tinha de esclarecer, e pedimos cá em baixo para falar com o Presidente. Depois de várias tentativas, subimos ao gabinete do presidente, bateram à porta, mas ninguém abriu. Os moradores forçaram a porta e a porta abriu. O coitado do Presidente Orlando Gonçalves4 estava sentado à mesa, deu um pulo, naturalmente assustadíssimo com medo de que o matassem [risos]. De facto, uma coisa é certa, é que pouco tempo depois mexeu-se.

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 5 SAAL Linda-a-Velha, Proposta de Implantação. Desenho 2, escala 1/1000, 16 de Junho de 1975 

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 6 SAAL Linda-a-Velha, final de obra, 1978 

RdPF: Ainda antes das interferências partidárias do projecto...

JSC: No projecto não, no processo.

RdPF: No processo. Como correu o processo de aquisição de terrenos?

JSC: Na academia de Linda-a-Velha - que era uma academia que existia onde faziam teatros e coisas assim - acordámos fazer uma reunião geral. Eu, ‘senhor arquitecto’, ia apresentar o bairro, o que não é verdade, porque eu era ‘a pessoa que fazia os projectos’. Não havia a relação do senhor arquitecto, ainda que é evidente que era uma pessoa muito importante para eles. Não me quero menosprezar, mas também não quero altear. Entrei na academia, sentei-me à mesa, aí com cem moradores na academia, é uma coisa um bocado aterrorizadora. À altura ainda não tínhamos nada, nem terrenos, nem riscos nenhuns, nada.

Estávamos numa fase de aglutinação dos moradores. Esse papel foi assumido pela Isabel Cordovil. Estávamos a tentar formar a associação. Porventura, ainda nem pensávamos em estatutos, embora esse processo sido muito rápido. Passados três meses, já tínhamos os estatutos.

Eu, nascido em Lisboa e filho de Lisboetas, neto de Lisboetas, nem conhecia bem Linda-a-Velha. Tal como hoje, não conheço bem ainda Carnaxide, não conheço bem Alcochete. Já passei dezenas de vezes em Carnaxide, mas não conheço os terrenos susceptíveis para construção, o mesmo em Linda-a-Velha há cinquenta anos. Então tive uma ideia, que hoje acho luminosa, que foi atirar a co-responsabilidade para os moradores. Co-responsabilidade do sentido que vou passar a explicar. Disse-lhes isto:

- Vocês, enquanto comunidade, conhecem melhor que eu o local: que terrenos sugerem para o vosso futuro bairro? Eu analisá-los-ei e farei a minha proposta.

E, de facto, das coisa mais absurdas às menos absurdas, foram propostas três localizações razoáveis. Dessas três soluções, sugeri uma e disse o porquê. Era uma zona que estava em altura, que se localizava na zona de Linda-a-Velha e onde existia um depósito de água e um centro de telecomunicações. Questões ligadas com as redes, tinha limitações efectivas na altura dos futuros edifícios. Eu não estava a ver aquele terreno cheio de torres. Portanto, de alguma maneira, essa limitação também informou a minha proposta de intervenção.

Depois, voltámos a ter nossas reuniões, já não me lembro quando, e [a proposta de terreno] foi aceite por eles. Nem eu, nem eles sabíamos de quem era o terreno. Esta situação, hoje em dia, é caricata. É caricato eu, eventualmente, ter ideias para um terreno que nem sei quem é o proprietário. Hoje em dia, é uma coisa impensável, mas na altura não era. Depois soube que era de uma senhora, que ficou ‘para morrer’.

Eu comecei a trabalhar para o terreno, que foi aprovado por eles nessas reuniões gerais, já na nova associação. Em termos sociais era muito interessante, as assembleias eram compostas por cerca de 70% de mulheres e 30% de homens. Porque, os homens estavam depois a beber umas cervejolas. No fundo, na linha daquilo que disse há pouco de quando fizemos a ocupação simbólica do terreno5.

João Cunha Borges (JCB): Depois desse momento simbólico, como se desenrolou o trabalho?

JSC: Depois de eu já estar a começar a trabalhar nos projectos fiz umas maquetazinhas e falei essencialmente com as mulheres da associação. Fiz umas maquetas à escala 1:50, em balsa e ainda plantas à escala 1:20. Ainda tenho uns slides sobre isto (Figura 7), não sei se no livro aparece alguma coisa.

SSL: Não, no livro só aparece uma fotografia de uma maquete geral (Figura 8).

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 7 SAAL Linda-a-Velha, uma das várias maquetas 

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 8 SAAL Linda-a-Velha, maqueta do bairro 

JSC: Essa era uma maquete prévia, isso é já depois. Fui eu que fiz as maquetas para falar com elas. Nós tínhamos definido casas de dois pisos, que para mim, causava um ambiente urbano simpático. Em termos urbanísticos, agora está um bocadinho alterado, mas na altura isto era muito mais rarefeito do que é hoje e esta subida de Algés até Linda-a-Velha, era muito mais rarefeita. Certo, é que, quem sobe do lado direito, eram moradias unifamiliares de dois pisos. De alguma maneira, era uma continuidade das volumetrias, o que eu achava muito interessante. O que eu sempre achei muito desinteressante - e alguns colegas nossos fizeram, alguns bons arquitectos fizeram, decorrente do acaso dos terrenos - era haver prédios de cinco, seis, sete pisos e depois à frente umas coisas largas a fazer as casinhas de um piso, que era as casinhas dos pobrezinhos.

- Olha ali, aquilo é o bairro dos pobrezinhos.

A questão da imagem urbana era para mim muito importante. Isto é, que em termos não só volumétricos, mas também arquitectónicos. No sentido de que o bairro não fosse segregador e que não fossem casas de pobrezinhos. Foi uma preocupação muito grande que eu tive.

Se virem a fase um da Portela-Outurela, aquilo são casas principescas, que é uma coisa imoral, porque as fases subsequentes nada têm a ver com aquilo. Imoral neste contexto em que estamos a falar, porque o facto das pessoas viverem muito mal em quartinhos de três metros quadrados, não dá o direito dos técnicos fazerem coisas 30 vezes maiores para compensar. Aqui não há exercícios de compensação, aqui somos todos seres humanos, ao abrirmos os braços, a nossa envergadura é a mesma, sejamos pobres ou ricos. E daí que a minha bitola tivesse sido o RGEU e não foi essa a bitola de alguns colegas.

Gastaram muito dinheiro ali [Portela-Outurela], com poucas habitações e a primeira fase podia ter comtemplado muito mais gente em condições dignas. Mas, enfim, interessa-me mais falar do meu [projecto]. E, portanto, as minhas preocupações foram essas: Inserção volumétrica e arquitectónica. Isto é, nunca aquele bairro devia ser visto como ‘aquilo são as casas dos pobrezinhos’.

RdPF: Mas isso também era uma exigência das pessoas?

JSC: Foi essencialmente exigência minha.

RdPF: Mas sentia essa urgência das pessoas de pertencerem à cidade ou de viver num local que é anexo à cidade?

JSC: No fundo, a posição dos moradores, em termo sociais, era de ser como os outros e não de viver na barraca. O sair da barraca e vir para aqui foi uma forma natural de ascensão. Se bem que o quotidiano se mantivesse o mesmo, porque eles já eram tão urbanos no passado recente, como depois.

TMM: Voltando atrás, o processo de expropriação não foi um processo fácil…

JSC: O bairro ocupava cinco hectares e meio. Todo o terreno da dita senhora. Publicamente já contei essa história6, mas vou repetir rapidamente. Estava eu ali no meu atelier, que era duas dessas janelas [da sede ocupada] e alguém bate à porta. Era o [arquitecto] Bartolomeu Costa Cabral. Que tinha sido meu professor e com quem eu me tinha dado muito bem. Tinha sido um bom professor. Eu fui aluno do Nuno Portas e o Bartolomeu Costa Cabral, que era o professor de Composição de Arquitectura. Que, enfim, era professor de projecto de facto. O Portas não era a pessoa mais indicada para ser professor de projecto, por ser um homem da teoria, um homem da palavra e da agitação de ideias. E o Bartolomeu é um homem do projecto, de muita qualidade de projecto, e sabe muito sobre construção. Foi um homem com quem me dei bem.

Eu fiquei apreensivo. - O que é que este tipo quer?

Então, aqui numa casa ocupada, alguém lhe terá dito que estava aqui. Não fui eu certamente.

Ele veio cá de manhã.

“Ó Silva Carvalho, desculpa o incomodo, mas a senhora - já não me lembro do nome - incumbiu-me de ver se você podia escolher um outro terreno”.

Ele estava muito aflito e eu muito aflito estava para dialogar como ele. Porquê? Aquilo era irreversível. Ponto final!

Enfim, lá justifiquei. Tentei não ofender, ele também nunca ofendeu, no sentido de ferir susceptibilidades. Entrou muito civilizadamente e muito civilizadamente saiu. E, pronto.

Da parte do projecto, há uma parte que queria frisar, não a parte do desenho em específico - telhado para dentro, telhado para fora, risca cinzenta forte e janela com os caixilhos em amarelo forte e a base em branco. Isso são tudo coisas que eu não pedi opinião a ninguém. Não ia perguntar aqui à minha amiga, se gostava mais de amarelo ou de encarnado. Ia perguntar sim, sobre questões do funcionamento interno da casa.

Outra coisa fundamental, que se falou, e que lhes tive de perguntar, porque era fundamental para o desenvolvimento do projecto, foi sobre as limitações volumétricas.

Eu disse: “Estamos limitados a dois pisos. Existem soluções, independentemente de serem casinhas isoladas ou em banda. Querem duplex ou vamos optar rés-do-chão e primeiro andar? Isto é, uma família no rés-do-chão e outra no primeiro andar”.

Isto, era determinante para o projecto e a esmagadora maioria das pessoas que consultei queria o duplex. Foi praticamente unanime a escolha do duplex.

Portanto, aí a opção foi 100% deles, assim como a opção da cor e da forma serem 100% minhas.

A questão da organização interna foi naturalmente discutida. Mas, não a decisão de fazer plantas direitas ou plantas oblíquas, essa decisão fui eu, de acordo com o terreno.

Evidentemente que depois surgiram problemas, porque me foi imposto pela Câmara e que que eu compreendia, que lá em cima havia um limite, era zona non aedificandi.

Eu estendi a zona dos limites do bairro até a zona non aedificandi, onde começava a descida para Carnaxide. A primeira fase, que é uma descida mansa, eu sugeria aos meus amigos da associação fazer uma horta colectiva.

Ficou toda a gente encantada porque, mesmo vivendo numa zona urbana, as raízes rurais das pessoas existiam e o prazer da couve e da cavadela, é um prazer real e que hoje respeito tanto ou mais que há 50 anos.

SSL: E isso é uma realidade ainda hoje no bairro, qualquer canteiro no bairro está cultivado.

JSC: Sim. O engenheiro Cunha, que mandava na Câmara há 50 anos, não podia dizer que não. Eu nunca tive problemas em termos de aprovações, mas é evidente que a própria Câmara, ao arrepio do que me tinha imposto, construiu na zona da horta colectiva numa banda, cujo projecto nem sequer fui convidado a fazer, porque já estava, naquela altura, menos fácil o meu relacionamento com ela.

SSL: Portanto, essas habitações são posteriores a 1981, depois do bairro ser todo construído, não são da sua autoria?

JSC: Exactamente. Nessa zona non aedificandi, que a Câmara me proibiu de construir, veio depois a construir. Com uma agravante, que era com projecto dos técnicos da Câmara, para elementos da brigada. Como [terreno] era da associação, eles tiveram que se inscrever como associados.

SSL: Tenho só mais uma questão, que tem a ver com a brigada de apoio local, que é muito distinta de outras. Neste caso, quem está à frente da brigada técnica é uma psicóloga, a Isabel Cordovil.

JSC: Neste caso, ela foi a primeira pessoa a ser contactada e geriu muito bem todo o trabalho social.

SSL: Não tendo feito parte de outras brigadas, mas tendo tido certamente contacto com outras brigadas (…)

JSC: Com certeza, Com certeza.

SSL: Sentiu que a relação com os moradores foi diferente por ter alguém das ciências sociais como chefe da brigada? E esse factor reflectiu-se numa melhor recepção da população à brigada?

JSC: Não houve chefe de brigada e o nosso trabalho foi muito bom e positivo para a associação, como um todo.

Eu assumi de uma forma cabal a parte do projecto e ela assumia de uma forma cabal a parte da assistência social.

Responsabilizou-nos aos dois e nós trabalhamos muito bem. (…) Aliás uma das coisas que muito me orgulhou, foi 30 anos depois de eu sair de cá, em 2005, eu já cá não estava e muitos dos moradores já tinham morrido, puseram o meu nome numa pedra gravada no jardim (Figura 9 e 10). Eu, fiquei ‘para morrer’, fiquei emocionado.

Isto vem nesse sentido, que nos demos bem. A Isabel deu-se bem, eu dei-me bem. Conseguimos.

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 9 SAAL Linda-a-Velha, reunião na Associação entre a Direcção e a Equipa Técnica, 1975 

Fonte: José Silva Carvalho

Figura 10 SAAL Linda-a-Velha, inauguração da pedra no jardim central em homenagem ao arquitecto José Silva Carvalho, 2018 

SSL: Por fim, qual era o papel da [assistente social] Margarida Duque Vieira, enquanto chefe do SAAL de Oeiras, no Fundo de Fomento da Habitação (FFH)?

JSC: Originalmente era para aglutinar e completar as equipas técnicas e para apoiar a formação das associações no concelho de Oeiras, assim como havia outros responsáveis a este nível mais geral. A [Dr.ª] Joana Luz foi-o na zona de Setúbal, por exemplo.

O nosso colega do Porto - [arquitecto e] professor - assumiu que o SAAL é Porto, o SAAL era ele. Mas, de facto não. O SAAL foi muito mais que isso. Nós, equipas SAAL, eramos dependentes dos serviços centrais [FFH], em termos de pagamentos, nós trabalhávamos à hora.

SSL: Os restantes elementos da brigada, que aparecem como membros do FFH - para além da Margarida Duque Vieira, foram o [eng.º técnico] Hélder Tiago e [eng.º civil] o Hernâni Dias - qual foi o papel deles?

JSC: O FFH tinha o papel de gerir. Por exemplo, quando fizemos o concurso para a primeira empreitada. Para a análise das propostas, estava eu e a direcção, e eu socorri-me do Hélder Tiago - que era do FFH - porque me parecia importante haver na observação das empreitadas. A empreitada das infra-estruturas e a sua execução foi fiscalizada pelo FFH, através do Hernâni Dias.

Fonte: Sara Silva Lopes, 2024

Figura 11 Visita ao Bairro 25 de Abril, Linda-a-Velha, Oeiras 

Agradecimentos

Ao arquitecto José Silva Carvalho, pela sua disponibilidade para conversar e pela generosidade em mostrar-nos o bairro e os seus moradores. À Associação de Moradores 25 de Abril, por nos receber e ceder o espaço para a conversa. Ao engenheiro Albano Pereira, pela conversa sobre o Bairro SAAL 18 de Maio e pela cedência do contacto do seu amigo e arquitecto José Silva Carvalho. Ao Ricardo Santos, pelo entusiamo pela arquitectura deste programa habitacional e pela contribuição dos elementos gráficos que fazem parte do livro que coordenou sobre o SAAL Oeiras. À Dona Joana, por nos receber tão amavelmente na sua casa e por partilhar as suas filhoses connosco.

Financiamento

Este trabalho é financiado pela FCT - Fundação para a Ciência a Tecnologia: [DFA/BD/5568/2021; SFRH/BD/151381/2021 e SFRH/BD/148556/2019]

Bibliografia

Santos, R. (ed.) (2016). Cidade Participada: Arquitectura e Democracia. Lisboa: Tinta da China. [ Links ]

1 Telha de fibrocimento, na qual se utilizava amianto como matéria-prima, produzida na fábrica da Lusalite - Sociedade Portuguesa de Fibrocimento, S.A.R.L. (1933-1999), em Oeiras.

212 de Abril de 1975.

3O SAAL da Portela-Outurela era dirigida pelo arquitecto António Carvalho.

4Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Oeiras.

5Ainda antes da conversa ter início, o arquitecto José Silva Carvalho encontrou-se com alguns amigos e habitantes do bairro no café da associação de moradores, onde relembrou a história sobre a ocupação simbólica do terreno. Contou que os moradores fizeram um piquenique no terreno onde seria o bairro e que, no meio do evento, foram surpreendidos com um morador das casas ao lado, que apareceu com uma caçadeira para mostrar que não eram bem-vindos ali. Entretanto, as mulheres levantaram-se para o “apaziguar” e, quando o arquitecto deu por isso, já o tinham deitado ao chão e afastado a caçadeira. O arquitecto chegou a intervir para acalmar os ânimos, porque uma das mulheres já estava com uma pedra de grandes dimensões no sentido de agredir o dito morador.

6Referindo-se a uma conversa da programação paralela da exposição ‘Políticas de Habitação em Lisboa, da Monarquia à Democracia’, que esteve patente no Museu da Cidade de Lisboa entre 3 Fevereiro e 30 Abril de 2023 e teve curadoria científica do geografo Gonçalo Antunes (CICS.NOVA-NOVA FCSH).

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