Introdução
A escabiose é uma infestação cutânea parasitária, altamente contagiosa, provocada pelo ácaro Sarcoptes scabiei var. hominis. O quadro clínico apresenta-se sob a forma de erupção pruriginosa, que frequentemente afeta áreas inter-digitais e flexoras, cicatriz umbilical e regiões glúteas. A escabiose pode apresentar manifestações clínicas diversas, variando de quadros ligeiros e localizados a formas exacerbadas e difusas.1-3
Dentre as variantes clínicas, destaca-se a escabiose crostosa ou ‘sarna Norueguesa’, caracterizada por hiperinfestação escabiótica, decorrente de resposta imune não protetora do hospedeiro, sendo frequentemente associada a estados de imunodepressão.1-3A imunodepressão dificulta a resposta imunológica do organismo, o que impede a eliminação da população de ácaros, ocasionando assim a formação de crostas hiperceratóticas e reações inflamatórias cutâneas exacerbadas, manifestas por quadros de eritrodermia.2,4
Eritrodermia ou dermatite esfoliativa consiste em uma reação inflamatória cutânea, envolvendo mais de 90% da superfície corporal, caracterizada por eritema de distribuição generalizada e grau variável de descamação. Esta entidade clínica pode ser desencadeada por diferentes fatores causais como reações medicamentosas, neoplasias, doenças sistémicas, dermatoses inflamatórias prévias, e infeções, como a escabiose crostosa.5-7
Nessa perspetiva, a eritrodermia pode representar um desafio diagnóstico, especialmente para os médicos não-dermatologistas, tendo em vista sua ampla gama de agentes etiológicos e características clínicas inespecíficas.8 No caso da escabiose crostosa, achados específicos como os túneis escabióticos podem ser mascarados por escoriações, eczematização ou impetiginização.1,4Por conseguinte, a avaliação dermatológica torna-se essencial para a investigação diagnóstica desses quadros, adotando a dermatoscopia e o exame direto por raspado como recursos diagnósticos.9
Dessa forma, este estudo teve como objetivo apresen-tar um caso de eritrodermia em doente que, apesar de ter psoríase como doença de base, doença frequentemente as-sociada a quadros de eritrodermia e etiologia mais provável para o quadro, fechou o diagnóstico de escabiose crostosa, destacando a importância de considerar esta afeção como diagnóstico diferencial.
Caso Clínico
Apresentamos o caso de uma mulher de 65 anos, que comparece ao setor de urgência hospitalar queixando-se de eritema difuso e prurido intenso há cerca de 2 semanas, com episódio isolado de febre de 38ºC, nas 48 horas antecedentes à admissão hospitalar. Relatava uso recente de amoxicilina e clavulanato por 7 dias, prescrita por médico generalista na suspeita de impetigo.
Histórico de diabetes mellitus tipo 2, hipertensão arterial, transtorno depressivo e tabagismo há cerca de 30 anos. Apresentava ainda psoríase em placas associada à artrite psoriásica axial de difícil manejo, com necessidade de diferentes esquemas imunodepressores, além de uso inadvertido de corticoide tópico e sistémico por longo prazo, inclusive com quadro de fratura vertebral devido osteoporose secundária. Medicada com uso de metotrexato 25 mg por semana, ácido fólico 10 mg por semana, prednisona 10 mg por dia, além de anti-hipertensivos, antidiabéticos orais e antidepressivos. Uso prévio de dois esquemas imunobiológicos anti-TNF, adalimumab e infliximab, com a última dose menos de 60 dias antes desse quadro.
Na admissão, a doente foi avaliada pela equipe de medicina interna, apresentando-se em bom estado geral, afebril, acianótica, eupneica, eucardia, sem adenopatias ou organomegalias, ao exame clínico. A avaliação laboratorial evidenciou leucocitose com desvio à esquerda, elevação de parâmetros inflamatórios, porém sem alterações em transaminases hepáticas e índices renais, e serologias víricas para VIH, VHB e VHC negativas. As hipóteses diagnósticas iniciais consideradas pelos médicos internistas foram farmacodermia severa ou exacerbação da psoríase sob forma de eritrodermia, sendo então prescrita prednisona 60 mg, por via oral, e solicitada avaliação ao serviço de Dermatologia.
Ao exame dermatológico, observava-se eritema difuso envolvendo tronco e membros com áreas crostosas, amarelo-acinzentadas, e algumas pústulas dispersas (Figs. 1 e 2). Notamos ainda pápulas eritematosas em dorso das mãos e interdigitais dos pés (Fig. 3).
Como investigação complementar, foram realizadas biópsias cutâneas e análise microscópica de raspado de pele. O exame microscópico direto evidenciou numerosos ovos e parasitas Sarcoptes scabiei (Fig. 4). O exame anatomopatológico demonstrou hiperplasia epidérmica de padrão psoriasiforme, associada à ortoceratose e infiltrado perivascular composto por eosinófilos, evidenciando-se ácaro Sarcoptes scabiei na camada córnea (Fig. 5).
Iniciou terapêutica médica com ivermectina 200 mcg por kg de peso corporal, dose única repetida em 7 dias, associado à permetrina 5% em loção para aplicação tópica em ciclo de 7 dias, com repetição de ciclo em 1 semana. Todos os residentes domiciliares e contato próximos também foram tratados. A doente evoluiu com melhoria paulatina do quadro clínico, após 2 dias de internamento, recebendo alta hospitalar e encaminhamento aos serviços de Dermatologia e Reumatologia para seguimento em ambulatório.
Discussão
A eritrodermia pode apresentar variadas causas, de maneira que, raramente se identificam fatores que direcionam o seu diagnóstico etiológico.7 Tal condição clínica revela-se ainda mais desafiadora, ao se considerar que em par-cela expressiva dos casos, encontram-se presentes doenças cutâneas preexistentes, as quais podem ou não estar relacionadas ao desencadeamento da eritrodermia.5,10
O diagnóstico etiológico precoce da eritrodermia revela-se essencial, na medida em que, a evolução da condição pode levar a complicações sistémicas como distúrbios hidroeletrolítico e termorregulatório, hipoalbuminemia, insuficiência cardíaca de alto débito e síndrome do desconforto respiratório.11
Considerando-se que as causas mais frequentes de eritrodermia são as doenças cutâneas preexistentes agudizadas,10 a hipótese diagnóstica inicial cogitada no caso reportado foi a psoríase eritrodérmica. Por outro lado, devido ao uso crónico de diversos fármacos pela doente, sobretudo tratamento recente com antibióticos, considerou-se a farmacodermia como possível diagnóstico diferencial.
As reações medicamentosas figuram como segunda causa mais comum de eritrodermia, apresentando-se de forma súbita com resolução geralmente mais rápida que outras etiologias de eritrodermia.10,12Além disso, manifestações como febre, leucocitose com eosinofilia, edema, adenomegálias, hepatomegália, esplenomegália, disfunção hepática e renal também favorecem a hipótese de farmacodermia.11,12Outros diagnósticos diferenciais também devem ser conjeturados, como eczema, doença de Darier, dermatite de contato e ictiose.13,14
Todavia, apresentações atípicas ou extremas de escabiose crostosa podem ocorrer sob a forma de eritema disseminado com descamação e crostas espessas, afetando principalmente cotovelos, joelhos, mãos, pés e couro cabeludo, mimetizando a psoríase.1,9,13,15Sob outra perspetiva, o uso crónico de corticoides também pode favorecer o surgimento de manifestações clínicas incomuns, como no caso reportado, sendo facilmente confundidas com outras dermatoses.16Além disso, o prurido - frequente nas infestações por Sarcoptes scabiei - pode não estar presente em quadros exuberantes de escabiose crostosa.9,17
Dessa forma, a diferenciação da escabiose crostosa das demais etiologias de eritrodermia pode ser estabelecida a partir de achados clínicos como o envolvimento acentuado de interdigitais,1,9,15observados no caso reportado, bem como pela microscopia direta de raspado cutâneo evidenciando ácaros e / ou ovos de Sarcoptes scabiei.1
A dermatoscopia também representa um importante recurso diagnóstico, possibilitando a identificação de sulcos escavados e parasitas que se apresentam como triângulos acastanhados em forma de asa-delta.1,18,19Entretanto, em peles de fototipo alto e áreas pilosas a visualização do ácaro pode ser mais difícil, dependendo da experiência do examinador.20
Devido à atipia do caso, a dermatoscopia não foi adotada, realizando-se então a biópsia das lesões. O exame anatomopatológico na escabiose crostosa pode revelar hiperceratose maciça, acantose de padrão psoriasiforme, sulcos escavados e ácaros no estrato córneo da epiderme, e eventualmente, áreas de espongiose próximas aos sulcos. A derme geralmente apresenta infiltrados linfohistiocitários perivasculares, compostos principalmente por eosinófilos.14,20,21Esses achados foram observados na amostra do caso reportado.
Em relação ao tratamento da escabiose, a primeira linha terapêutica consiste na permetrina 5% (loção ou creme), que deve ser aplicada na pele de todo corpo (exceto cabeça e pescoço), sendo mantida idealmente por 8 a 14 horas. A reaplicação é indicada em 7 a 10 dias.22,23Outras opções de escabicidas tópicas incluem benzoato de benzila 10%-25%, enxofre precipitado 2%-10%, crotamiton 10%, malatião 0,5% e lindano 1%.24
A ivermectina sistémica é considerada terapia de segunda linha, com recomendação de dose de 200 mcg/kg, repetida em 7 a 10 dias, devido ao caráter exclusivamente acaricida da medicação.23 Revisão recente da Cochrane evidenciou que ivermectina sistémica e permetrina tópica a 5% apresentam efetividade equivalente.24Dessa forma, recomenda-se a ivermectina em casos com contraindicações ao uso da permetrina ou refratários à terapêutica tópica.22
Contudo, em casos de escabiose crostosa, devido ao grau de infestação dos ácaros, recomenda-se manejo terapêutico combinado: ivermectina sistémica em administrações regulares por 2 semanas (dias 1, 2, 8, 9 e 15); associada a permetrina tópica a 5% com aplicações diárias por 1 semana.23
Vale ressaltar que, o sucesso terapêutico pressupõe o tratamento dos contatos íntimos dos doentes infestados, mesmo que assintomáticos, assim como a adoção de medidas de controlo ambiental: lavagem de roupas e acessórios pessoais com água quente (temperatura acima de 50ºC)22 ou deposição em repositórios plásticos fechados por aproximadamente 72 horas.24
Conclusão
Frente ao caso clínico reportado, reforça-se a importância da escabiose crostosa como diagnóstico diferencial dos casos de eritrodermia, sobretudo entre doentes em estados de imunodepressão. Assim, a partir de exame clínico apurado e biópsia cutânea, realizou-se o diagnóstico dessa condição dermatológica, possibilitando o tratamento precoce, relativamente simples, que evitou a evolução do quadro com complicações.
Embora as eritrodermias sejam frequentemente associadas a reações medicamentosas agudas ou agravamentos de doenças cutâneas prévias, como a psoríase, deve-se sempre atentar a outras etiologias desencadeantes para essa condi-ção dermatológica, a qual pode evoluir com complicações e riscos de vida.