Introdução
A investigação aqui apresentada procura analisar os avanços e os recuos no processo da descentralização em Moçambique, que arraiga as suas bases legais nos princípios da Constituição liberal de 1990 (Nhaueleque, 2018). Entretanto, tal processo começou - do ponto de vista legislativo - em 1994 (Lei 3/94), para concluir com a aprovação de novas normativas em 2018.1 Quem impulsionou e financiou a descentralização foi a comunidade internacional (Maschietto, 2016), assim como aconteceu com muitos outros países africanos (Osaghae, 1995; Mozaffar, 1997). No caso moçambicano, o papel decisivo foi desempenhado por agências das Nações Unidas, como a uncdf e o pnud, pela União Europeia e por algumas cooperações bilaterais, tais como a austríaca e a italiana (UNCDF, 2022; UNDP, 2005).
O caminho para a descentralização começou depois da assinatura dos Acordos Gerais de Paz (AGP) em Roma em 1992 entre o governo e a Renamo. Entretanto, nem aqui, nem na Constituição de 1990 - salvo princípios genéricos - se faz menção explícita à descentralização (Darch, 2018).
Vários estudos têm analisado a evolução do processo de descentralização em Moçambique (Weimer, 2012; Weimer e Carrilho, 2017; Bilério, 2019; Forquilha, 2020), identificando constrangimentos como a fraca participação dos cidadãos na vida pública local, a modesta autonomia financeira das instituições locais ou o domínio, dentro destas, das lógicas partidárias nacionais. Esta investigação complementa estes estudos e investiga a seguinte questão: que fatores explicam os fracos avanços do processo de descentralização em Moçambique, quer em termos territoriais (com boa parte do país ainda não “municipalizado”), quer políticos e legais?
A hipótese que norteou esta investigação foi a de que a cultura centralizadora, juntamente com os interesses dos dois principais partidos de Moçambique, Frelimo e Renamo, impediu o estabelecimento de uma dinâmica democrática “normal” (Macamo, 2016), que resultou numa descentralização fraca e fortemente controlada pelos níveis centrais. Tal circunstância significou que o governo exerceu sempre um controlo geral sobre os municípios, condicionando as suas atividades usando armas legais (fiscalização mediante o Ministério da Administração Pública) assim como políticas (arbitrariedade na atribuição de recursos financeiros, consoante a cor política deste ou daquele município). Entretanto, por razões que serão explicitadas mais à frente, a partir do início da década de 2010 a Renamo considerou a descentralização como um dos eixos privilegiados da sua estratégia política geral.
A linha interpretativa que se quis oferecer com este estudo utiliza duas estratégias de ação política adotadas pelos principais partidos: a minimização do “risco político” (Bussotti, 2014) e a utilização das “oportunidades políticas” (Tilly, 1978; Tarrow, 1996; McAdam, 1996). Estas dimensões são ilustradas no ponto relativo ao modelo de análise deste estudo.
Investigar o processo de democratização e descentralização em Moçambique é relevante uma vez que o que aqui se apresenta é um estudo de caso representativo de vários outros similares no continente africano, nomeadamente de países que transitaram, sem uma tradição democrática prévia, do monopartidarismo ao pluralismo por volta da década de noventa. A descentralização desenrola-se em vários países em regimes semiautoritários (Cheesman, 2020), nos quais os riscos são considerados como sendo maiores do que as vantagens (Souré, 2009). Para dar conta deste contexto mais amplo, ao longo da investigação, serão incorporados elementos comparativos, com destaque especial para casos da África Austral e os países africanos de língua portuguesa.
Esta investigação foi desenvolvida através de uma abordagem qualitativa e multidisciplinar, centrada na perspetiva histórica, política e na interpretação jurídica da descentralização. A história política ajudou a captar a evolução do posicionamento dos dois principais partidos moçambicanos quanto à questão da descentralização, ao passo que a leitura jurídica foi necessária, uma vez que as opções políticas para a descentralização desaguaram num conjunto de leis que representam a referência objetiva para estudar o fenómeno em questão. Entrevistaram-se quatro informantes-chave, nomeadamente um investigador sénior, Joseph Hanlon, que estudou a descentralização desde os anos de 1990; o antigo ministro da Administração Estatal, Aguiar Mazula; José Manuel Moisés, membro do MDM com conhecimentos específicos sobre o assunto aqui abordado e Alberto Ferreira, deputado da Renamo.2 Empiricamente, a investigação baseia-se, além das entrevistas acima recordadas, na análise de leis e em recortes de imprensa, que permitiram identificar declarações e posicionamentos públicos de algumas figuras políticas com papel relevante no processo de descentralização.
O texto consta de três partes principais, além desta introdução e da conclusão. Na primeira apresenta-se brevemente o quadro da descentralização a nível do continente africano; na segunda faz-se uma análise das características essenciais do monopólio político da Frelimo em época socialista, introduzindo as primeiras discussões relativas à descentralização na altura da transição democrática, no início da década de 1990. Finalmente, na terceira analisa-se o percurso do processo da descentralização em Moçambique, enfatizando os avanços e os recuos a partir do posicionamento dos dois maiores partidos políticos do país.
Breves notas sobre o processo de descentralização em África
Diferentemente da tradição ocidental, o processo de descentralização em África é relativamente recente, tendo surgido durante a chamada terceira onda da democratização (Huntington, 1994). A descentralização constituiu uma das mais importantes reformas da estrutura da organização territorial, administrativa e política em África (Otayek, 2007), com forte influência da ideia de que “small is beautiful”3 (Schumacher, 1973).
A descentralização envolve várias dimensões e diferentes formas (e níveis) de governação. Abrange pelo menos três âmbitos: o institucional, o político e o fiscal. A nível institucional, trata-se de como o aparato administrativo ajuda na governação a nível local, incluindo relações entre instituições descentralizadas e centrais, assim como com atores locais, por exemplo as autoridades tradicionais; a nível político estão incluídas as reformas que permitem às instâncias locais exercer funções precisas e legalmente estabelecidas; finalmente, a dimensão fiscal diz respeito aos recursos financeiros disponíveis para os níveis descentralizados (Smoke, 2003). Quanto às formas de descentralização, são pelo menos três, a saber: desconcentração administrativa, em que o governo central distribui algumas responsabilidades para entidades provinciais, sem com isso alterar o facto de o poder continuar a ser a nível central; delegação, em que a transferência de poderes se direciona para entidades semiautónomas, que só podem ser fiscalizadas pelo governo central, mas mantendo as suas prerrogativas; finalmente, a devolução, em que funções, poderes e recursos financeiros são atribuídos a entidades locais quase-autónomas, no geral municípios ou, ainda mais frequentemente, regiões ou estados, no caso de governos federais (Ozmen, 2014).
Neste estudo, o conceito de descentralização que será usado abrange a dimensão política e institucional, com breves incursões sobre a dimensão fiscal. Esta última representa um aspeto decisivo para a descentralização em Moçambique; entretanto, quer devido à natureza desta pesquisa, quer ao facto de existirem estudos sólidos sobre esta dimensão, decidiu considerar-se a dimensão fiscal apenas no que diz respeito ao seu impacto na dimensão política da descentralização (Nguenha, Raich e Weimer, 2012; Banze, 2019). Vale a pena adiantar que uma das conclusões a que o estudo chegou é que, em Moçambique, a forma de descentralização que nunca foi implementada - devido à gestão fiscal do relacionamento interinstitucional centro-periferia - foi a devolução, ao passo que as outras duas - desconcentração e delegação - foram mais comuns, como se verá ao longo da análise.
Moçambique - apesar das suas especificidades - partilha com muitos outros países africanos algumas caraterísticas em relação à forma como o processo de descentralização foi levado a cabo. No geral, em África, tal processo nem sempre coincide com o objetivo de aproximar o cidadão às instituições. Como destaca Otayek (2007, p. 133), a maioria dos países africanos procurou “mudar tudo para que nada mude”, abraçando formalmente a democracia para não pôr em causa o condicionante da ajuda externa (Faria e Chichava, 1999), mas na prática continuando com os pressupostos de um Estado autoritário e centralizado (Wunsch e Olowu, 1990; Morier-Genoud, 2009). Em conformidade com Misuraca (2007), a descentralização, como uma política pública, se pensada sob o ponto de vista de países africanos, foca-se em diferentes tipos de configurações administrativas, nos quais as autoridades tradicionais assumem importância significativa. No sentido geral, constatou-se - em particular no meio rural africano - uma discrepância entre as reformas legislativas realizadas, baseadas em aparatos teóricos sólidos, e os resultados efetivos da descentralização (Boone, 2003).
A este propósito, o estudo de Crook e Manor (1998) confirma a tendência para um processo de descentralização impulsionado por forças exógenas, levado a cabo com demasiada pressa e no qual, pelo menos relativamente aos dois países que estudaram, Gana e Costa do Marfim, depois de uma fase promissora seguiu-se uma de estagnação e de escassa eficácia do fornecimento dos serviços públicos básicos. Um estudo de dez anos posterior ao de Crook e Manor chega a conclusões parecidas. Com efeito, se Crook e Manor procuraram relacionar descentralização com eficácia dos serviços, no caso de Crawford e Hartmann quatro estudos de caso relacionaram a descentralização com a luta contra a pobreza. A conclusão foi que apenas na Tanzânia houve algum sinal de uma correlação positiva, enquanto em Uganda, Gana e ainda mais no Malawi a descentralização não ajudou no combate à pobreza ( Crawford e Hartmann, 2008). Um estudo comparativo que envolveu cinco países africanos de língua inglesa chega a conclusões também parecidas com as anteriormente referenciadas: neste caso, em relação ao ano de 2016, os progressos da descentralização, em termos de boa governação, foram diversificados. Em alguns países (Etiópia e Quénia) foram consideráveis, em outros, pouco significativos (Uganda e Nigéria), e no caso do Gana a descentralização piorou o índice de governação global da Mo Ibrahim Foundation (Mohmad e Loureiro, 2017).
Nos países da SADC (Southern African Development Community), de que Moçambique é um dos membros fundadores, os processos de descentralização foram diversificados, mas a maioria dos países implementou formas avançadas, embora com resultados concretos não completamente satisfatórios. A África do Sul, optou pelo federalismo - definido como “governação cooperativa” - com a nova Constituição de 1996 (Powell, 2010); a Namíbia introduziu, desde a nova Constituição de 1990, governos locais como elementos centrais da sua governação, reforçados com duas novas leis em 2000 (Tsamareb, 2000); o Quénia aplicou, com a reforma constitucional de 2010, um modelo de devolução dos poderes que tem garantido um sistema político-institucional mais equilibrado entre os diversos níveis de governação (Cheeseman, Lynch e Willis, 2016). Entre os exemplos mais tímidos de descentralização na região da SADC é possível mencionar dois que partilham uma caraterística comum: terem sido governados sempre pelo mesmo partido político, ou seja, Botswana - considerado como um dos países mais democráticos do continente (Dipholo e Mothusi, 2005) - e Angola.
Angola tem muitos elementos comuns com Moçambique: além de ser membro da SADC, é um país lusófono, com um partido que sempre dominou a cena política (Movimento Popular de Libertação de Angola, MPLA), e que representa, a nível continental, um dos exemplos menos desenvolvidos de políticas de descentralização (Santin e Teixeira, 2019). O próprio Banco Mundial desenvolveu um projeto bastante ambicioso (World Bank, 2006); contudo, tal tentativa ficou em larga medida sem efeito, uma vez que, até hoje, Angola não conseguiu realizar nenhuma eleição autárquica (Orre e Pestana, 2014). Os níveis locais de governação previstos pela Constituição de 2010 devem ser interpretados como a simples desconcentração do poder central (Teixeira, 2011).
Diferente foi o percurso feito em outros países africanos lusófonos. Em Cabo Verde, por exemplo, uma adesão mais aberta ao modelo democrático permitiu a instauração de uma legislação fortemente descentralizada, incluindo a dimensão fiscal (Silva, 2019). Registaram-se, em Cabo Verde, oito eleições autárquicas, sinal de um modelo que associa democratização com descentralização (Semedo et al., 2013). Hoje, Cabo Verde está a debater a possibilidade de uma regionalização, de momento sem efeito, devido às diferentes visões sobre o tema por parte dos dois partidos principais (Monteiro, 2021).
A contextualização aqui apresentada demonstra que o modelo de descentralização em África depende, em larga medida, do jogo político entre partidos hegemónicos e partidos de oposição, e - principalmente no caso destes últimos - das suas dinâmicas internas. No caso moçambicano, esta dialética contou com fases diferenciadas, dependendo das estratégias que os dois maiores partidos (Frelimo e Renamo e, desde 2009, também o MDM) foram desenvolvendo consoante as mudanças gerais, como a descentralização. O modelo de análise que se propõe no ponto a seguir procura refletir a dimensão variável e dialética do debate político à volta da descentralização, tendo como pilares a linha investigativa do risco político e a das oportunidades políticas, com as suas interligações.
Modelo de análise: risco e oportunidade política
As duas linhas interpretativas do risco e das oportunidades políticas constituem o pano de fundo para compreender as dinâmicas da descentralização em Moçambique. Para melhor entender como estas duas linhas ajudam na compreensão da descentralização no contexto moçambicano, é preciso primeiro ver quais foram as condições iniciais deste processo. Com efeito, o processo de descentralização começou em Moçambique no seio da democratização de um país que nunca tinha conhecido um regime pluralista: primeiro, o colonialismo, e, depois, o socialismo, não construíram nenhuma forma de participação do cidadão na vida pública. Com esta herança, o país enfrentou a viragem de um sistema autoritário para um democrático, passando, em concreto, do monoportidarismo da Frelimo ao bipartidarismo Frelimo-Renamo.
O próprio processo de democratização faz parte do pacote que Moçambique teve de aceitar na negociação com as instituições internacionais para sair de uma crise económica sem precedentes, consoante um modelo julgado por vários autores como vertical e antidemocrático (Harrison, 1996; Macamo e Neubert, 2004). Quem saiu a ganhar foi a Renamo, que conseguiu derrubar o modelo socialista que sempre tinha hostilizado, impondo à Frelimo eleições democráticas (Ngoenha e Castiano, 2019). Assim, as condições iniciais da descentralização resultaram de uma herança histórica não democrática, de instituições ainda controladas pelo partido Frelimo, e de um partido hegemónico - a própria Frelimo - que viveu a descentralização como uma enésima imposição por parte da comunidade internacional. A história da Frelimo era profundamente centralista e anti-localista. Quando se constituiu, em 1962, o intuito era agregar vários movimentos de inspiração regionalista e até étnica, e a sua linha política sempre foi, como costumava recordar Samora Machel, “matar a tribo para fazer nascer a nação” (Machel, 2009). A cultura centralizadora da Frelimo nunca recuou. Os posicionamentos dos vários líderes do partido quanto a este tema são claros e unânimes ao longo do tempo (salvo um pequeno grupo do qual se falará mais à frente): Guebuza recorda - no Comité central de Maio de 2019 - que o “tribalismo” (assim se definem ainda as instâncias locais dentro da Frelimo) continua a ser um cancro que poderá fazer voltar a Frelimo à época pré-1962, ao passo que Sérgio Vieira sempre viu a descentralização como uma ameaça à unidade nacional (Carta, 2021). Por isso, a compreensão das condições iniciais e dos objetivos últimos mediante os quais o processo de descentralização acontececu resultam de fundamental importância para compreender a forma e, neste caso específico, os avanços e recuos com que tal processo foi levado a cabo (Eaton, Kaiser e Smoke, 2010).
O primeiro objetivo da Frelimo, na transição para o modelo democrático, foi manter o monopólio do poder no novo contexto de eleições competitivas (Bussotti, 2014). Tudo aquilo que dizia respeito a possíveis perdas deste poder foi lido como ameaça e, portanto, considerado como um risco a ser gerido e minimizado. A limitação dos espaços públicos de debate (Bussotti, 2015), assim como um processo de descentralização muito cauteloso (o dito “gradualismo”), fazem parte desta estratégia.
Na prespetiva da Frelimo, a descentralização acarretava riscos evidentes: a perda de fatias significativas de poder, embora a nível local, em favor da Renamo; uma unidade nacional ameaçada; e a perda de controlo de parte da burocracia que sempre lhe foi fiel. Nunca se pensou em alargar os espaços de participação à vida pública mediante a descentralização. Por estas razões, a gestão e a redução do risco representam a linha interpretativa principal que se aplica à postura da Frelimo. Isto não quer dizer que a própria Frelimo, ao longo do processo de descentralização, não tenha captado oportunidades específicas e contingentes.
É interessante fazer referência a um relatório do Banco Mundial, publicado em 2009, que procura fazer um balanço do processo de descentralização implementado em Moçambique. Nota-se um evidente desfasamento entre os objetivos que o Banco Mundial e outras instituições internacionais tinham indicado aquando do começo deste processo, e os do governo ao longo da sua realização prática: continuam a constituir desafios o quadro legal, em muitos casos ambíguo; a escassa transparência na escolha dos novos municípios, além dos primeiros 33 estabelecidos pelo Pacote Autárquico de 1997; a funcionalidade das municipalidades, ainda muito abaixo do UN Governance Index; e, finalmente, a extrema fragilidade das finanças municipais. O relatório recorda que apenas 1% dos recursos financeiros nacionais eram destinados aos municípios, tendo estes uma capacidade muito baixa de arrecadar impostos próprios (Banco Mundial, 2009), sendo muito controlados pelo governo central (Banze, 2019).
O relatório representa uma síntese eficaz dos efeitos do gradualismo que a Frelimo assumiu para levar avante a descentralização. A estes aspetos deve acrescentar-se a estratégia que a Frelimo adoptou, considerando as oportunidades que a descentralização lhe dava. Estas foram de dois tipos, mais uma vez contrárias às expetativas dos doadores internacionais: em primeiro lugar, a conquista do meio rural e das suas lideranças tradicionais: cerca de 5000, segundo dados oficiais (Mário e Nandjia, 2006), a maioria das quais fiéis à Renamo, concentradas no centro e no norte do país. O assalto ao mundo rural iniciou-se com Chissano que, já em 1995, declarara publicamente que “nós queremos que a autoridade tradicional exista” (s. a., 1995), concretizando-se nos primeiros anos de governação de Guebuza. Em 2005 foi aprovado um decreto - como se explica a seguir - no qual os líderes tradicionais (“régulos”) beneficiariam de um estatuto institucional, recebendo um valor correspondente a 13 dólares por mês (Makgetla, 2010). Em segundo lugar, manter o domínio das instituições locais significava conseguir alimentar uma pletora de antigos e novos clientes que foram ocupar municípios, distritos e, a partir de 2009, administrações provinciais, na maioria dos casos sem competências e com resultados modestos. É quanto Bettina Bunk destaca num seu estudo, enfatizando a diferente leitura que das funções das instituições locais deram ao partido no poder e aos doadores internacionais: o primeiro usando municípios e províncias para perseguir objetivos meramente políticos e clientelistas, os segundos para implementar formas de participação na vida pública e boa governação, que raramente foram alcançadas (Bunk, 2018).
Dentro de um quadro em que a descentralização constituiu, historicamente, uma ameaça para o partido hegemónico, o contrário deveria valer para a Renamo, o maior partido da oposição. Por isso é que a linha investigativa das “oportunidades políticas” foi aplicada a esta formação política (e depois ao MDM). As oportunidades políticas foram consideradas aqui sob dois diferentes pontos de vista: no primeiro caso, as oportunidades que teoricamente o quadro político e legislativo proporcionava à Renamo; no segundo caso, as oportunidades que a Renamo capitalizou, traduzindo-as em dividendos políticos.
No primeiro caso, num país como Moçambique, em que o poder central está nas mãos de um partido hegemónico como a Frelimo, a conquista de administrações locais deveria constituir uma oportunidade ímpar para mostrar boa governação e maturidade política, projetando essas boas práticas no plano nacional. Exemplos não faltam neste sentido: limitadamente ao contexto africano, o caso da África do Sul demonstra que uma descentralização que dê poderes e recursos financeiros aos níveis periféricos estimula a competitividade política entre os vários partidos, tornando a descentralização uma prioridade para as oposições e um risco para os partidos hegemónicos, neste caso o African National Congress (Muriaas e Svasand, 2015). Contudo, a própria Renamo considerou a descentralização pouco interessante até o início da década de 2010, e perigosa em certos aspetos.
A explicação desta postura aparentemente incoerente deve ser procurada em questões objetivas, que dizem respeito à situação político-institucional do país, assim como subjetivas, internas à vida da própria Renamo. No primeiro caso, em 1997, quando o governo da Frelimo aprovou a reforma dos órgãos locais, escolheu-se a descentralização para os centros urbanos - onde o partido no poder tinha uma evidente hegemonia - como forma de devolução, com procedimentos eleitorais para escolher os administradores dos novos municípios; ao passo que a desconcentração administrativa foi aplicada ao meio rural - onde a Renamo gozava de um significativo consenso eleitoral -, com administradores nomeados pelo governo central (Ames et al., 2010). Um simples cálculo eleitoral, a partir das primeiras eleições gerais de 1994, permitiu à Renamo prever derrotas em quase todos os municípios (inicialmente 33), sem possibilidades de competir no meio rural onde este partido era mais forte, o que provocou um certo desinteresse e até oposição (boicotagem das primeiras eleições autárquicas de 1998) dentro do partido de Dhlakama para com o processo de descentralização. É significativa uma frase que Dhlakama disse à antropóloga Lundin, que tinha feito um estudo para envolver na descentralização as autoridades tradicionais e que culminou na aprovação do decreto de 2005: esta investigadora foi definida como “a senhora que entregou os régulos à Frelimo” (Makgetla, 2010). A Renamo não podia concordar com este tipo de descentralização.
Ao mesmo tempo, a descentralização podia representar uma ameaça interna: podiam emergir novas figuras de municípios bem governados por membros da Renamo, o que punha em risco a liderança do histórico chefe, Afonso Dhlakama. Só para dar dois exemplos, Dhlakama não teve receio de expulsar os seus concorrentes internos mais perigosos: primeiro Raul Domingos, em 2000, depois Daviz Simango, em 2008, este último o primeiro produto “envenenado” da descentralização - com efeito, Simango foi eleito como autarca da cidade da Beira, pela primeira vez, em 2003, na lista da Renamo. A sua crescente popularidade incomodou Dhlakama, que continuou a olhar para a descentralização com suspeita.
A viragem da Renamo em relação à descentralização iniciou na década de 2010. Foram as circunstâncias nacionais alteradas que determinaram a mudança da sua linha política. Em primeira instância, ficou evidente que as contínuas manipulações dos resultados das eleições gerais pela Frelimo tornavam impossível uma vitória da Renamo a nível central. Era, consequentemente, preciso investir mais nas instituições locais. Em segundo lugar, a aprovação, em 2005, do novo decreto intitulado Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do Estado (BR, 2005), sobre as autoridades tradicionais, abria outra frente de luta nos territórios periféricos de todo o país. O decreto reformulava no sentido geral toda a configuração dos órgãos locais do Estado, formalizando o papel dos chefes tradicionais, secretários do bairro ou aldeia (art. n.º 109). Por um lado, tais figuras tinham o dever de servir de elo de ligação entre as instituições locais e as comunidades (art. n.º 107); por outro, tinham o direito (art. n.º 109) de ostentar os símbolos da república, usar farda e receber um subsídio. Além disso, as formas de organização das comunidades encontravam uma regulamentação legal (art. n.º 110), com base no Conselho Local.
Diante destas inovações administrativas se tratava, agora, do lado da Renamo, de pensar numa estratégia competitiva para não perder o apoio das lideranças tradicionais, procurando conquistar municípios onde fosse possível; finalmente, a constituição de um partido novo, o MDM, resultante de uma cisão da Renamo e com sérios interesses na governação local, induziu Dhlakama a acelerar o compromisso do seu partido para com a descentralização. Nesta fase, o primeiro competitor da Renamo foi o MDM, mais do que a Frelimo.
A ascensão do MDM parecia imparável. Surgido primeiro como lista cívica local, o MDM transformou-se em partido político em 2009, conseguindo conquistar as principais cidades do país. Em 2013, os seus candidatos ganharam de novo na Beira, afirmaram-se em Quelimane, Nampula e quase que conseguiram, com Venâncio Mondlane candidato, vencer na cidade de Maputo.
Todas estas circunstâncias aconselharam Dhlakama a lançar uma nova linha política em que a descentralização, mesmo nas suas formas mais extremas (divisão do país, federalismo, províncias autónomas), constituía o ponto fulcral da estratégia da Renamo. No Conselho Nacional do partido, ocorrido em Nampula em 2012, a descentralização foi assumida como uma das prioridades políticas do partido (s. a., 2012), abrindo assim uma nova fase política.
Os pontos que se seguem fazem um breve percurso histórico de como a descentralização foi interpretada, na prática, por parte das principais forças políticas do país, tendo como base as duas linhas investigativas acima descritas e a evolução legislativa sobre a matéria.
O monopólio político no período socialista (1975-1990) e a função da descentralização na transição democrática
Em Moçambique, depois de cerca de dez anos de luta de libertação nacional, iniciada em 1964 e terminada em 1974, com a assinatura dos Acordos de Lusaka,4 a Frelimo conseguiu apresentar-se ao antigo colono, Portugal, assim como a toda a comunidade internacional, como o único e legítimo representante do povo moçambicano. Assim, a estrutura administrativa de tipo colonial acabou por inspirar, com as devidas diferenças, o centralismo de matriz socialista do novo Estado independente.
Quando a Frelimo assumiu o controlo do país, o imperativo primário era reduzir ao máximo os riscos de oposições e insurgências, pelo que a opção pelo centralismo (definido, à maneira socialista, de “democrático”) foi a única viável naquele contexto histórico (Weimer, 2012; Brito, 2019).
O Estado moçambicano surge assim com as seguintes características: acentuada centralização, sobretudo nas políticas económicas (Mosca, 1999); monopólio político do partido no poder, com adesão à ideologia socialista e ao ideal do “homem novo” e do autoritarismo (Macagno, 2009). A opção fortemente centralizadora deve ser enquadrada consoante a necessidade, nos primeiros anos que se seguiram à obtenção das independências em muitos países africanos, de garantir uma unidade nacional ainda incipiente e atravessada por tensões várias, principalmente étnicas, como no caso de Moçambique (Silva, 2019). Apesar disso, algumas testemunhas da primeira fase da experiência socialista relatam a tentativa de reforçar a componente da participação popular na tomada de decisões políticas a nível local. Entre tais observadores é preciso recordar Joseph Hanlon5 e John Saul (2010).
De qualquer forma, o centralismo e o autoritarismo foram afirmando-se cada vez mais depois da independência. Internamente, a Constituição de 1975 expressava não só a hegemonia, como também o monopólio político de uma frente (frelimo), transformada, após o seu iii Congresso ocorrido em 1977, em partido político com a mesma denominação (Frelimo),6 mas com características em parte diferentes. A Frelimo autodefiniu-se como a “força dirigente do Estado e da sociedade”, de acordo com o art. n.º 3 da Constituição de 1975. E o monopólio político consequente reduziu os processos eleitorais a uma mera escolha interna para eleger a assembleia nacional e, em seguida, as assembleias locais ou do povo (Brito, 2009).
Joseph Hanlon,7 embora reconhecendo este monopólio, realça que, nas “zonas libertadas” (1970-1975), a frelimo procurou instaurar um “poder popular” com continuidade ao longo dos primeiros anos de independência. Outros observadores de tendência marxista da época assinalavam a mesma tentativa, com ênfase no contexto rural (Davidson, 1979; Saul, 1984).
Entretanto, a partir dos anos 1980, as experimentações feitas para aproximar o aparelho do Estado às populações assumiram a forma de emanação do poder central da Frelimo. As massas rurais estavam desconfiadas devido à sua simpatia para com a Renamo (principalmente no centro e no norte do país) e à oposição ao projeto modernizador da Frelimo (Florêncio, 2004; Meneses, 2009).
Do lado externo, a adesão ao marxismo-leninismo - embora Moçambique fosse um país não-alinhado - foi uma excelente justificação para implementar o centralismo e o autoritarismo (Abrahamsson e Nilsson, 1994; Gujamo, 2016). Quando chegou a altura de interromper a experiência socialista, a frelimo teve de abraçar o liberalismo, aderindo às instituições de Bretton Woods (Gujamo, 2016). Com a finalidade de manter o monopólio político, deveriam adotar-se novas estratégias. O “autoritarismo competitivo” (Levitsky e Way, 2002) acentuou os seus dois elementos contraditórios: a competição eleitoral formalmente livre, de um lado, e o sistema ainda autoritário, do outro.
Deviam fazer-se arranjos institucionais em várias frentes, seguindo a agenda dos doadores, que condicionavam a ajuda - essencial para a sobrevivência do país - à adoção de medidas que abrissem o espaço público, melhorassem o sistema da tutela dos direitos humanos e efetivassem o jogo democrático a todos os níveis, inclusive o local. Foi assim que o Banco Mundial, juntamente com alguns doadores bilaterais, como Dinamarca, Suíça e Países Baixos, desembolsaram fundos significativos para o processo de descentralização, condicionando-o ao respeito de alguns princípios básicos, isto é, governos locais democráticos e eficientes (Alexander, 1997; Ferrant, 2018; Kathyola e Oluwatoyin, 2011).
As políticas da descentralização fazem parte e devem ser enquadradas no seio de uma ambígua transição para a democracia, em que a Frelimo procurou conceder as menores oportunidades políticas possíveis às oposições (Bussotti, 2014; Chichava e Pohlman, 2010).
As primeiras medidas para conter o risco de perda do poder substanciaram-se através do controlo dos mecanismos eleitorais, dos quais os doadores tiveram de ficar de fora (Tollenaere, 2006), aceitando fraudes sistemáticas por parte da Frelimo, com uma Comissão Nacional das Eleições (CNE) fortemente condicionada pelo partido no poder (Brito, 2008; Silva, 2016).
Aplicou-se a mesma lógica à descentralização, vista - segundo defende José Manuel Moisés8 na sua entrevista - com extrema desconfiança por parte do governo central.
O percurso da descentralização em Moçambique: entre avanços e recuos
Deram-se passos em prol da descentralização a partir de 1922 em Moçambique, a seguir à aprovação da nova Constituição de 1990 e da assinatura dos Acordos Gerais de Paz (Roma, 1992); em 1998 deram-se as primeiras eleições autárquicas. Contudo, estes progressos foram caracterizados pelo grande gradualismo, para não dizer prudência ou até conservadorismo. Como destacou Alberto Ferreira, deputado da Renamo, “o proceso de descentralização foi muito longo”, tendo as suas origens no facto de a Frelimo querer impor a lógica de “quem ganha leva tudo”, não deixando à Renamo a governação nas províncias em que usualmente este partido consegue a maioria dos assentos.9
Identificaram-se três etapas fundamentais do processo de descentralização: a primeira - muito breve - é representada pela fase do reformismo avançado. Esta fase foi caracterizada por um significativo ímpeto reformador por parte do ministro da Administração Estatal, Aguiar Mazula, juntamente com um grupo minoritário da Frelimo, e culminou com a proposta de lei 3/94 de 13 de setembro, que foi de imediato revogada.
A segunda fase está cronologicamente concentrada entre 1995 a 2012 e culmina com a aprovação da lei 2/97 de 18 de fevereiro,10 e de mais duas leis aprovadas em 2008 e 2012. Esta fase pode ser definida de conservadorismo institucional.
Finalmente, o último período - que resulta na assinatura de um novo acordo de paz entre Filipe Nyusi (presidente do país) e Ossufo Momade (presidente do partido Renamo), a 5 de Setembro de 2019 - é simbolizado e antecedido pela revisão pontual da Constituição de 2018, e pode ser definido aqui de descentralização moderada.
A tabela 1 procura resumir avanços e recuos das três fases acima identificadas.
Primeira fase: reformismo avançado (1992-1994)
A fase que aqui foi chamada de reformismo avançado tem a sua génese num quadro internacional em rápida mudança, que se refletiu em alterações significativas mesmo a nível local. Como recorda o antigo ministro da Administração Estatal, Aguiar Mazula,11 “o início da década de 1990 foi caracterizado pela crise do bloco soviético a que Moçambique sempre esteve próximo e, internamente, por um certo cansaço em relação a uma guerra que tinha destruído uma boa parte das infraestruturas do país”. A nível interno, o v Congresso da Frelimo, de 1989, decretava o abandono da linha marxista-leninista e a preparação da Constituição democrática de 1990 (Diaz, 2022). Assim, iniciava-se uma longa transição com base no fim da guerra civil, na introdução das liberdades fundamentais, mas que nem por isso conseguiu desmantelar o aparato administrativo que a Frelimo socialista tinha instaurado e que caracterizou a primeira fase da independência. Uma transição, assim foi definida, inacabada (Bussotti, 2022).
Com efeito, a confirmação da incompletude desta transição vem das palavras de Aguiar Mazula. Segundo o antigo ministro, a cultura marxista ainda dominava a vida institucional: o partido tinha um poder muito maior em relação ao Estado, pelo que, quando tomou posse como ministro da Administração Estatal, em 1990, a tentativa foi desmontar o aparelho do Estado a partir de baixo, “atacando o Estado dos seus segmentos inferiores”12.
A Constituição de 1990 quase não aborda a organização do Estado. Consta de 212 artigos, mas só o n.º 4 é que estipula as formas organizacionais do Estado, a saber: províncias, distritos, postos administrativos e localidades (Igreja, 2013).
Entretanto, uma ala reformadora e minoritária da Frelimo, representada no governo pelo ministro da Administração Estatal, Aguiar Mazula, cujo líder e principal ideólogo era o antigo ministro Óscar Monteiro, interpretou a descentralização como oportunidade e não como risco: oportunidade de repercorrer o caminho interrompido na década de 1980, visando o envolvimento mais direto e substancial das comunidades locais (Weimer, 2012). Pequenos partidos de oposição não-alinhados com a Renamo posicionaram-se positivamente diante da proposta dos reformadores da Frelimo: entre eles, a União Nacional Moçambicana (UNAMO), a Confederação Democrática de Moçambique (CODEMO), mas sobretudo o Partido Nacional Federalista (PANAFE) e o Partido Federal de Moçambique (PAFEMO), que nem chegou a ser reconhecido legalmente como formação política. Esta visão ia contra a conceção centralista, do “Estado de Nachingwea” (Chichava, 2009). A elite reformadora tinha compreendido que o excesso de centralismo estava a contribuir para a construção de um “país sem nação” (Cahen, 1994); contudo, não teve a força de impor o seu ponto de vista à maioria do partido, assim como do parlamento.
A matéria da descentralização foi abordada pelo Programa da Reforma dos Órgãos Locais do Estado (PROL). Aprovado em 1992, o PROL procurou abranger a dimensão institucional, política e financeira. Identificaram-se dois níveis: por um lado, a descentralização territorial que interessava aos municípios, por outro lado, a desconcentração, inerente às províncias.
A ideia inicial foi municipalizar todo o território nacional, instituindo 141 municípios. Foi esta a proposta com que os deputados da última legislatura monopartidária tiveram de lidar. Através do PROL saíram, segundo Guambe (2008), as bases formais para a definição do quadro legal para a descentralização.
O texto proposto ao parlamento em 1994, intitulado Quadro Institucional dos Distritos Municipais transformou-se na lei 3/94 de 13 de setembro, que dava início à institucionalização da descentralização em Moçambique. Esta lei, se olhada do ponto de vista da construção do Estado moçambicano (Abrahamsson e Nilsson, 1994), era a que mais se adequava ao contexto daquela época, com as primeiras eleições autárquicas previstas para 1996.
Segunda fase: conservadorismo institucional (1995-2012)
Os fatores que mudaram o clima político, resultando no conservadorismo institucional, remontam a razões diferenciadas: por um lado, o espanto, por parte da Frelimo, consequente aos bons resultados da Renamo nas primeiras eleições gerais de 1994; por outro, o receio de que soluções federalistas pudessem pôr em risco a unidade nacional, como Mazula recorda.
O antigo ministro declarou que foi este último argumento escondido a compactar a frente conservadora, que levou ao bloqueio da lei 3/94 de 13 de setembro. O argumento formal, de uma alegada inconstitucionalidade desta normativa, foi involuntariamente levantado pelo advogado Domingos Arouca, quem considerava como importante e positivo o dispositivo que previa a eleição direta dos órgãos executivos. Entretanto, o grupo dirigente da Frelimo - em concordância com a Renamo - usou este argumento para derrubar a lei, ao invés de propor uma emenda constitucional simples e de imediata aprovação.13 O resultado foi que o processo de municipalização abrangente - previsto pela lei 3/94 - foi revisto e limitado (Cistac, 2012; Chiziane, 2011).
O caso da lei 3/94 representa o primeiro momento em que a Renamo aborda a descentralização como risco, não captando as possíveis oportunidades. Primeiro, a Renamo devia ser a única força representativa da oposição. Assim sendo, precisava de orientar a sua luta política para rumos claros e compreensíveis, como a substituição da Frelimo no governo central. Segundo, este partido não estava preparado para concorrer em todos os municípios, e uma possível convivência dos seus administradores locais com o governo central da Frelimo podia constituir um vulnus político de difícil gestão; finalmente, a municipalização total podia favorecer a emergência de lideranças locais ameaçadoras da liderança de Dhlakama. Finalmente, havia questões financeiras relativas aos eleitos, cujas regalias onerosas podiam resultar insustentáveis.14
A comunidade internacional também desempenhou um papel relevante. As normativas sobre a organização institucional do Estado deviam ser aprovadas mediante um acordo explícito entre Frelimo e Renamo. A Renamo utilizou este seu direito de veto para concordar com a proposta mais prudente da Frelimo, apesar da contrariedade de Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha - favoráveis a uma visão mais radical da descentralização -, mas com o apoio da União Europeia. Não foi por acaso que o então ministro Alfredo Gamito, que substituiu Aguiar Mazula a partir de 1995, declarou que a lei foi retirada devido às pressões dos doadores (Hanlon, 1995). O resultado foi o cancelamento da lei 3/94 por unanimidade. O “gradualismo” foi o método adotado para levar avante a descentralização. A nova lei seria aprovada em 1997, e as eleições realizadas em 1998.
O primeiro passo para conseguir aprovar uma nova lei foi uma emenda constitucional, que se deu em 1996, com a lei 9/96 de 22 de novembro.15 Esta instituía as bases do Poder Local (PL), através de medidas que acabaram “favorecendo a implantação de um modelo de descentralização mais brando” (Simone, Matos e Ckagnazaroff, 2018, p. 536). A emenda preparou o terreno para a aprovação da nova lei, a 2/97 de 18 de fevereiro, que já previa o gradualismo (Weimer, 2012; Cistac, 2012) na criação das autarquias locais, cujo número foi reduzido a apenas 33 municípios, entre vilas e cidades, contra os 141 da lei 3/94. Segundo Buur (2009), o gradualismo foi aberto e flexível, funcional à retórica política mais do que à edificação de um Estado realmente descentralizado, justificando assim o recuo conservador.
A nova lei, porém, manteve um elemento importante que dizia respeito à participação dos cidadãos na eleição do presidente do respetivo município: o sistema de maioria a duas voltas, caso nenhum candidato tivesse conseguido a maioria absoluta. Foi com esta normativa que se realizaram as primeiras eleições autárquicas de 1998, e que vigorou por 20 anos, até 2018.16
Na ótica da redução máxima do próprio “risco político”, a Frelimo colocou limites claros na lei: acima de tudo, o nível provincial ficou de fora do processo da descentralização, com o governador nomeado pelo presidente da República. Em segundo lugar, o governo quis garantir um controlo indireto também dos presidentes dos municípios eleitos, através da figura do administrador do distrito, nomeado pelo ministério da Administração Estatal e Função Pública (AWEPA, 2004).
Mesmo em termos de dimensões da descentralização, a de tipo fiscal foi, de facto, excluída. A lei 2/97 previa que o município pudesse criar receitas próprias; mas isso levou muito tempo. Em 2008, quando se criaram mais 10 municípios perfazendo 43, o executivo mudou as regras do jogo, criando o Fundo de Compensação Autárquica (FCA) e alterando todo o regime financeiro e tributário das autarquias locais, mediante a lei 1/2008 de 16 de janeiro. A resolução n.º 40/2012 de 20 de dezembro aprovava a Política e Estratégia da Descentralização (PED).
As novas normativas obrigavam os municípios a entregar ao governo central cerca de 80% da receita arrecadada, para a sua posterior “devolução” via FCA (Jamal, 2014). Este dispositivo legal penalizou os municípios mais virtuosos, beneficiando os menos eficientes, com mecanismos de redistribuição arbitrários.
Uma vez criados vários fóruns de participação da sociedade na tentativa de solucionar os problemas locais, tais como os Conselhos Consultivos Locais (Decreto 15/2000 de 20 de junho)17, a PED pretendia dar mais ênfase à consolidação e à participação, promovendo a interação entre os vários atores da descentralização democrática.
Entretanto, o ponto crucial continuou a ser a desconfiança da Renamo na transparência dos mecanismos eleitorais, que representaram o elemento central do novo conflito armado contra o governo. Por isso é que a descentralização começou a ser considerada como uma oportunidade para quebrar parcialmente o monopólio político da Frelimo, assim como para fazer face à constituição do novo partido político de oposição, o MDM, que estava a ameaçar o papel da Renamo como único representante da oposição no parlamento e no país (Forquilha, 2017).
Terceira fase: descentralização moderada (2013-2018)
O novo cenário forçou Dhlakama, no Conselho Nacional do partido ocorrido em 2012 em Nampula, a apostar na descentralização como arma estratégica da sua nova política: agora, o assalto ao poder local tornou-se uma prioridade e a Renamo conseguiu ler esta dimensão como a sua maior oportunidade. O quadro sofreu uma aceleração imediatamente antes e logo depois das eleições de 2014. Em junho de 2014 a iii Conferência Nacional da Renamo autorizou Dhlakama a dividir o país, tendo como linha de separação o rio Save (Raiva, 2014). Depois das eleições, este partido - além de não reconhecer os resultados - iniciou uma campanha de grande impacto mediático e popular; Dhlakama primeiro propôs um governo de gestão, que segundo Guebuza teria sido a forma melhor para o país cair na anarquia (Issufo, 2014); depois ameaçou novamente a divisão do país a norte do rio Save, e finalmente exigiu a nomeação de governadores da Renamo naquelas províncias onde o seu partido tinha conseguido a maioria dos votos. Em paralelo, evocou soluções federalistas, apoiadas por académicos como Cistac, quem, provavelmente devido a tal posicionamento, foi morto a 3 de março de 2015 em Maputo, supostamente por mão de esquadrões da morte (s. a., 2018). Segundo Ferreira, na supramencionada entrevista, Dhlakama nunca fez a proposta de dividir o país, mas - nesta terceira fase - procurou implementar um federalismo que mantivesse a unidade nacional, suportado pelos mais destacados académicos do país, entre os quais Ferreira cita o próprio Cistac, Severino Ngoenha, entre outros.
Em concreto, o grupo parlamentar da Renamo, no início de 2015, avançou com uma proposta de tendência federalista. Esta proposta ia além da simples reivindicação de ter governadores amigos naquelas províncias onde o partido de Dhlakama tinha conseguido a maioria eleitoral. Assim, a Renamo avançou para uma proposta de lei com vista à criação de regiões autónomas. A Frelimo não aprovou a proposta, não obstante as garantias dadas pelo novo presidente, Nyusi, a Dhlakama. O líder da Renamo assim falava, num dos seus inúmeros comícios em 2015, na cidade de Chimoio: “Uma coisa nós não iremos aceitar: se a Frelimo não aprovar este projeto [de criação de regiões autónomas], até que será bom, pois iremos removê-la do poder à força. Perderá tudo, e temos condições para tal” (PMA/APN, 2015).
Como opção secundária, a Renamo procurou voltar àquilo que os reformadores da Frelimo tinham conseguido com a lei 3/94: uma municipalização generalizada do país. Porém, o posicionamento dos parceiros internacionais continuava o mesmo - os Estados Unidos defendiam esta perspetiva, enquanto a União Europeia tinha uma abordagem mais cautelosa e gradual.
O acordo de princípio a que se chegou foi sobre a eleição direta dos governadores e também dos administradores distritais onde não tivesse chegado a municipalização. Foi com estas bases que se iniciou o processo parlamentar, na Comissão para os Assuntos Constitucionais, Direitos Humanos e de Legalidade, presidida por Edson Macuácua, da Frelimo.
O que saiu foi, mais uma vez, uma versão edulcorada da descentralização que se tinha perspetivado com acordos extraparlamentares entre os dois partidos. O deputado da Renamo, Ferreira, entrevistado em Maputo, admitiu que a Frelimo conseguiu recuar dos principais anseios que tinham movido a ação política do seu partido: a proposta do federalismo caiu, as eleições diretas dos governadores provinciais deram lugar às indiretas, finalmente as eleições distritais - presentes na nova revisão constitucional - também foram canceladas mediante uma iniciativa parlamentar unilateral por parte da Frelimo, em julho de 2023. Assim, a lei 1/2018 de 12 de junho, Lei da Revisão Pontual da Constituição da República de Moçambique, juntamente com a lei 6/2018 de 03 de agosto, lei que altera a lei 2/97 de 18 de fevereiro, estabeleceram o quadro jurídico-legal para a implantação das autarquias locais.
Relativamente às inovações destes dispositivos legais, podem tirar-se quatro ilações:
Os governadores das províncias são escolhidos mediante eleição indireta: o cabeça de lista indicado pelo partido vencedor das eleições provinciais será o governador, passando pelo crivo do voto da Assembleia Provincial (eleita por escrutínio direto);
Os presidentes dos municípios também são eleitos de forma indireta;
Os administradores distritais - nomeados até 2018 pelo governo - serão eleitos, mas só a partir de 2024 (uma cláusula, já ultrapassada);
Introdução do “Secretário do Estado na Província”, com poderes acima dos governadores, indicado pelo presidente da República.
O espírito das duas leis acima referenciadas denota um retrocesso pelo menos em relação às expetativas, com um tímido avanço. O que se observa é a vontade, por parte dos dois partidos maiores, em querer continuar a determinar todo o xadrez político e institucional, ignorando os demais sujeitos políticos e da sociedade civil. Esta visão estática dos dois partidos maiores conseguiu:
Limitar ao máximo o poder dos eleitores, cuja prerrogativa exclusiva foi a eleição dos órgãos legislativos, através de um sistema de listas bloqueadas;
O poder dos eleitos para os cargos executivos - presidentes dos conselhos municipais e governadores - é muito limitado, por duas razões: por um lado, devido à presença de figuras nomeadas pelo poder central - respetivamente administradores e secretários de Estado provinciais; por outro lado, trata-se de figuras manobradas pelos seus partidos políticos, aos quais devem responder, e não aos eleitores;
A Frelimo vê potenciada a sua capacidade de gerir o “risco político” de perder o poder em zonas estratégicas do país, mediante a introdução das figuras-sombra que “acompanham” as atividades dos presidentes dos municípios e dos governadores, com a vantagem de conseguir acomodar as consideráveis exigências da sua classe política, graças à multiplicação de cargos institucionais de relevo.
Depois desta lei, aprovaram-se outras normativas. Entre elas, as leis 3, 4 e 5, todas de 31 de maio de 2019, que estabelecem o quadro legal da tutela do Estado a que estão sujeitos os órgãos da governação descentralizada provincial e das autarquias locais, ao passo que a lei 6/2019 de 31 de maio estabeleceu o quadro legal sobre a organização, composição e funcionamento da Assembleia Provincial, assim como a lei 7/2019 de 31 de maio incidiu sobre a organização e o funcionamento dos órgãos da representação do Estado na província. Contudo, a lei base em que todas as outras posteriores leis se espelham é a lei 6/2018 de 3 de agosto, que fixa o quadro jurídico-legal novo para a implantação das autarquias locais.
Considerações finais
O estudo aqui apresentado pretendeu dar uma interpretação política à questão da descentralização em Moçambique, subdividindo tal processo em três fases fundamentais, com poucos avanços e muitos recuos.
A investigação foi levada a cabo contando com duas principais linhas de investigação, a do risco político e a das oportunidades políticas aplicadas às dinâmicas que se têm efetivado entre os dois principais partidos moçambicanos, Frelimo e Renamo. Em termos de risco político, é possível concluir que a Frelimo alcançou grande parte dos objetivos que tinha estabelecido: primeiro, no início do processo, na primeira metade da década de 1990, a hipótese de uma descentralização profunda, que levasse a uma municipalização geral do seu território e a uma transferência de poderes mesmo a nível fiscal, foi descartada. Segundo, o território municipalizado foi limitado e concentrado no meio urbano. Terceiro, os municípios tiveram uma autonomia financeira extremamente reduzida, continuando assim a depender do governo central. Finalmente, as províncias ficaram como entidades não tanto descentralizadas, quando desconcentradas, continuando a representar uma emanação do poder central a nível periférico até a última reforma de 2018.
Se a Frelimo interpretou a descentralização como risco a ser contido e gerido, a Renamo não captou o potencial de oportunidades políticas que provinham deste processo. Por exemplo, a Renamo recusou, depois das eleições de 1999, a possibilidade de o presidente Chissano nomear três governadores daquele partido em três das províncias em que tinha conseguido a maioria, preferindo que Chissano indicasse membros da Frelimo para ocupar aqueles cargos (Hanlon, 2001). A Renamo não deu passos significativos em termos de propostas para a descentralização pelo menos até 2011-2012. Foi sobretudo depois das eleições de 2014 que Dhlakama reivindicou a necessidade de a Renamo governar naquelas províncias onde tinha ganhado, reconhecendo na descentralização uma oportunidade política ímpar e a ser capitalizada. Oportunidade que resultou numa descentralização muito moderada, como demonstram os entraves que a Frelimo colocou, com sucesso, dentro do pacote legislativo de 2018.
A comparação com os outros países da SADC, assim como com outros africanos de língua portuguesa, demonstra quão parcial foi o processo de descentralização implementado em Moçambique. Enquanto Cabo Verde se destaca como um caso de relativa eficácia, Angola apresenta uma descentralização ainda mais incipiente, com níveis de dependência dos doadores externos tradicionalmente menores do que Moçambique (CES, 2007). Este fator foi decisivo para que o governo angolano não aceitasse as propostas de uma democracia mais madura, inclusive mediante a descentralização, que os doadores ocidentais conseguiram impor à elite política de Moçambique, segundo o que foi ilustrado ao longo deste estudo.
O caso aqui apresentado confirma uma hipótese que outros autores têm destacado ao abordar países que, como Moçambique, são caraterizados por serem regimes autoritários ou semiautoritários e altamente centralizados, por exemplo Marrocos, Ruanda ou Lesoto. Em tais casos, também a descentralização é fraca, e usada para consolidar o poder mediante políticas top-down, ao invés de abrir espaço de participação democrática a nível local, vistos como ameaças ( Vollmann et al., 2022). Entretanto, a investigação aqui apresentada teve uma limitação evidente: debruçou-se apenas no confronto político entre os dois partidos principais de Moçambique, deixando de fora a voz que outros atores nacionais (e em parte também internacionais) tentaram levantar a propósito do processo de descentralização. Principalmente na última fase da história política do país, que se abriu com o novo conflito governo-Renamo em 2013, outras formações políticas (a partir do MDM, com assentos parlamentares desde 2009) e sobretudo grupos organizados da sociedade civil pressionaram para que a descentralização assumisse um perfil mais claro e vasto. Contudo, o diálogo ficou restringido aos dois maiores partidos políticos, e provavelmente a não inclusão dos demais atores nesta negociação fez com que os resultados fossem muito modestos, aquém das expetativas de segmentos importantes da sociedade civil.
Outro ponto que este trabalho tocou de forma tangencial foi o papel da comunidade internacional: um papel muito reduzido, à primeira vista, se comparado com o que aconteceu no início da década de 1990, nas imediações dos Acordos Gerais de Paz e nos anos seguintes, quando as primeiras formas de descentralização foram implementadas. No caso do processo que levou à aprovação do novo pacote legislativo de 2018, o papel da comunidade internacional pareceu bastante reduzido. Entretanto, seria de grande interesse verificar o tipo de relações e condicionalismos que se desenvolveram entre os parceiros, principalmente ocidentais, e o governo moçambicano no seio do novo processo de descentralização, em que a lógica da contenção do risco prevaleceu, em detrimento de uma maior abertura à participação e ao envolvimento dos cidadãos na tomada de decisão a nível local.
Legislação
Boletim da república (1975), “Constituição da República Popular de Moçambique, de 25 de Junho de 1975”. I Série-Número 1. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (1990), “Constituição da República de Moçambique, de 2 de Novembro de 1990”. I Série-Número 44. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (1994), “Lei n.º 3/94 de 13 de setembro. Aprova o quadro institucional dos distritos municipais”. I Série-Número 37. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (1996), “Lei n.º 9/96 de 22 de novembro. Introduz princípios e disposições sobre o Poder Local no texto da Constituição de 1990”. I Série-Número 47. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (1997), “Lei n˚ 02/97 de 18 de fevereiro. Aprova o quadro jurídico para implantação das autarquias locais”. I Série. Número 7. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (2000), “Decreto n.o 15/2000 de 20 de junho. Estabelece as formas de articulação dos Órgãos Locais do Estado com as autoridades comunitárias”. Suplemento,i Série-Número 24. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (2005), “Decreto nº 11/2005. Aprova o Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do Estado”. 2.º Suplemento, i Série-Número 23. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (2008), “Lei nº 1/2008 de 16 de janeiro. Define o regime financeiro, orçamental e patrimonial das autarquias locais e o sistema tributário autárquico”. I Série-Número 1. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (2012), “Resolução n.o 40/2012 de 20 de dezembro: Aprova a Política e Estratégia da Descentralização”. I Série-Número 51. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (2018), “Lei n.º 1/2018 de 12 de junho. Lei da Revisão Pontual da Constituição da República de Moçambique”. I Série-Número 115. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (2018), “Lei n.º 6/2018 de 03 de agosto. Altera a Lei n.º 2/97, de 18 de fevereiro, que estabelece o quadro jurídico-legal para a implantação das autarquias locais”. I Série-Número 152. Maputo, Imprensa Nacional.
Boletim da república (2019), “Lei n.º 6/2019 de 31 de maio. Estabelece o quadro legal sobre a organização, composição e funcionamento da Assembleia Provincial”. I Série-Número 105. Maputo, Imprensa Nacional.















